Para se ter uma ideia a maior montanha da Europa é o monte Elbrus e mede apenas 5.642 metros de altitude. A Cordilheira dos Andes contém as maiores montanhas do mundo fora da Cadeia do Himalaia, que abriga os pontos culminantes do planeta, dentre eles o maior de todos o monte Everest. A cadeia montanhosa dos Andes ocupa toda face oeste da América do Sul e é formada pelo choque de duas placas tectônicas, a Placa de Nazca e a Sul Americana, tendo o monte Aconcágua, a sentinela de pedra, com 6.962 metros como seu ponto mais alto.
A nossa pequena aventureira Emanuele, ainda com 3 anos, já teve experiências em trilhas que muitos adultos tem dificuldade em percorrer. Já havia feito a Trilha das Cachoeiras em Corupá, percorreu as cavernas em Botuverá, trilhas do Parque Estadual do Cânion do Guartelá, Dunas de Ilha Comprida, Buraco do Padre, Cachoeira da Mariquinha, cachoeira do Rio São Jorge e fez a trilha de aproximação no Pico do Marumby, com dez quilômetros, que repetiu quatro vezes em cinco dias, sendo que em um deles subiu o Rochedinho, uma das formações que compõe o Maciço do Marumby.
Apesar da
pouca idade, a experiência de Emanuele nesse tipo de ambiente nos deixou
seguros que poderia encarar o ambiente Andino com sucesso. Sua motivação veio em parte do filme Frozen,
pois ouvimos como um mantra durante meses ela cantar: Você quer brincar na
neve...
Preparar seu equipamento foi uma tarefa um pouco complicada, pois vestimentas e calçados para sua idade são difíceis de encontrar no Brasil, mesmo em lojas especializadas, e a maioria não funciona perfeitamente. Alugar equipamentos é uma boa opção, mas não para este tipo mais individual. O melhor mesmo é comprar o básico, até porque para quem mora no sul são peças que podem ser uteis no inverno.
Outra preocupação era com a adaptação a altitude. A capacidade de adaptar-se a altitude é algo que se pode melhorar com o treino de resistência, mas todavia, é uma capacidade orgânica muito individual. Você pode ter pessoas com muito treino e resistência em baixa altitude mas que não se adaptam bem nas grandes elevações, e o oposto também pode ocorrer, onde uma pessoa com menor resistência acaba se adaptando melhor ou com mais rapidez. Os primeiros dias em grandes altitudes costumam ser bastante desconfortáveis, as pessoas sentem dor de cabeça, náuseas e um profundo cansaço, mesmo ao fazer as tarefas mais simples. Costuma se dizer que andar cem metros acima dos cinco mil metros, equivale a correr mil metros ao nível do mar. O Mal de Atitude é conhecido na língua Aimará, nativa dos povos andinos, como “Soroche”. A doença de altura se manifesta rapidamente, podendo incapacitar uma pessoa em poucos minutos, reduzindo sua capacidade motora, minando sua resistência, podendo evoluir para um quadro grave de enfisema pulmonar ou hipóxia e até mesmo a morte. O único tratamento é administrar oxigênio suplementar, colocar a pessoa em uma câmara hiperbárica ou simplesmente levar o indivíduo para uma menor altitude.
Pode parecer um absurdo que pessoas enfrentem tal adversidade conscientemente, com risco de morte, mas, mais pessoas morrem todo ano praticando modalidades como futebol, que teoricamente são muito mais seguras que a escalada. É como pensar em viagens de avião e de ônibus, quase todos os dias ocorrem acidentes com ônibus nas estadas do mundo, e ninguém dá muita importância, mas os poucos aviões que sofrem desastres viram notícias de projeção mundial.
A Cordilheira dos Andes atravessa diversos países, mas escolhemos a Bolívia para apresentar esse maravilhoso mundo a Emanuele. A região apresenta inúmeras características peculiares que a tornam um lugar muito interessante de se visitar, a começar pela diversidade ambiental, pois em um pequeno pais podemos passar por ambientes como, selva amazônica, pantanal, desertos de sal, areia, o lago mais alto do mundo, vulcões ativos e claro as gigantescas montanhas nevadas. Além da diversidade ambiental temos a cultural, evidente nas vestimentas típicas usadas pelo povo e o seu modo de vida, que conserva inúmeros traços da herança deixada pelos Incas, Aimarás, Quéchuas, Guaranis e outros povos que habitaram as Américas milhares de anos antes da colonização europeia. Nesse país ainda se fala a língua Aimará, Quéchua, Guarany, algumas línguas de tribos amazônicas e claro o espanhol.
Mabi na Praça de Santa Cruz de la Sierra |
Primeiro contato com a comida local foram os sorvetes, Emanuele aproveitou e tratou de saborear uns três tipos diferentes, muito bons, que não existem no Brasil. Achamos engraçado a marca dos gelados, Cabrera, que por acaso o logotipo fazia parecer ao longe que estava escrito sorvetes cobrero. De lá partimos em ônibus para Sato Cruz, uma cidade muito parecida com Cuiabá, com exceção da parte central, com ruas que formam anéis e um casario colonial espanhol bem preservado, no centro há varias praças igrejas e museus que valem a pena ser visitados. Chegando lá passeamos pelo centro, fizemos cambio de Reais em Bolivianos e tratamos de procurar algo para comer. Manu provou sucos que são vendidos em garrafas de vidro, que à primeira vista parecem refrigerantes; e comeu algumas Salteñas, que lembram as Fogaças paulistas. Nós preferimos uma refeição, logo descobrimos uma curiosidade, todas as mesas trazem um pequeno pote com molho picante. Molho muito forte, uma colher de chá no prato basta para torna-lo um prato de sopa num pote de lava incandescente; e para ficar mais interessante o molho causa um efeito que lhe deixa tonto, como se estivesse embriagado por uma bebida alcoólica. Após voltamos a explorar o local, e quando cansados, notamos várias pessoas passando o tempo na praça central e decidimos fazer o mesmo. A Manu aproveitou, havia uma verdadeira reunião de crianças bolivianas correndo atrás das “palomitas” na praça e as alimentando. Ela logo estava enturmada. Incrível como apesar do idioma diferente, as crianças tem a capacidade de se comunicar, se entender. Ela passou um bom tempo brincando com crianças de várias idades, nós não entendíamos muito os assuntos compartilhados ali por elas, mas elas riam a valer!
Mabi e uma nova amiga com as palomas |
Rumamos finalmente para La Paz, Manu descobriria sua comida boliviana preferida, o Cuñapê, espécie de pão de queijo devorado por ela as dezenas. Andar de ônibus na Bolívia é uma roleta russa, a maioria dos carros é comprado de empresas brasileiras, o problema é que a maior parte das companhias de transporte não possuem equipamento para fazer a manutenção dos banheiros, então acabam retirando os reservatórios e sistema hidráulicos. Se precisar ir ao toalete vai ter uma visão privilegiada do asfalto e ainda sentir um frescor ao sentar-se no Inodoro. Com a Manu não teve contratempo, pois as distancias mais longas percorríamos a noite e ela ia dormindo, como o anjinho que é!
Seguindo pela estrada após passar por Cochabamba a paisagem começa a mudar drasticamente. Inicia-se a subida do Altiplano Boliviano chegando a passar dos quatro mil e quinhentos metros de altitude, depois retornando a casa dos três mil. Nesse ponto Manu viu pela primeira vez a tão falada neve, que cobria os campos à beira da estrada.
Começam a aparecer casas de tijolos crus, rebanhos de lhamas, alpacas, plantações de Quiñua e os campesinos em trajes típicos, com seus chapeuzinhos cobrindo as orelhas, os Chuios; as mulheres, as chamadas Cholas, com suas enormes tranças negras uma de cada lado da cabeça, vestidos coloridos com anáguas e seus Aguaios, grandes bolsas feitas com uma única peça de tecido, onde carregam mantimentos, lenha, crianças e todo tipo de material.
Não tarda as montanhas despontarem no horizonte, com todo seu esplendor. Seus cumes nevados brilhando como pontas de prata sobre a rocha negra. Dentre elas se destaca o monte Ilimani, que nos diz que a cidade de La Paz está próxima. Ao chegar a paisagem impressiona, imaginem uma grande cratera com uma cidade incrustada no seu interior, e ainda o monte Ilimani ao fundo para complementar.
Os declives na cidade são tão acentuados que a prefeitura instalou um sistema de teleféricos para fazer o transporte público das partes baixas para as partes altas e vice versa. O cheiro nas ruas é muito característico, misturando ervas, tempero e o sempre presente cheiro de frango frito.
Fiquei maravilhada com o fato de que na Bolívia, há grande oferta de produtos artesanais e em natura. Não procure um mercado cheio de produtos industrializados como os brasileiros, pois são raros. Desde objetos, roupas a comida, tudo parece ser feito com a mínima utilização de máquinas. Alimentos como arroz, macarrão, sal, açúcar, batata, etc., são vendidos em pequenas lojas, a granel.
As ruas no setor antigo, são organizadas por semelhanças nos tipos de produtos oferecidos, há ruas que possuem quase que só lojas de roupas, outra apenas eletrodomésticos, alimentos e assim por diante. Lojas de joias produzidas com prata e pedrarias locais que deixariam qualquer mulher com os olhos brilhando são vistas com frequência. Roupas e outros acessórios manufaturados por Cholas sentadas nas calçadas. Mas o mais surpreendente foi o câmbio que realizamos com uma delas, (pois a cotação oferecida por elas é bem mais lucrativa do que a das casas especializadas), quando acertado os valores, eis que a Chola tira de baixo de sua saia, dois montes enooormes de notas de reais e notas de bolivianos. Sendo que ela trabalhava também com Dólar, Soles, Pesos e Euros, isso fez com que eu me perguntasse quantos compartimentos e sortilégios de objetos haviam ocultos naquelas saias gigantes.
Pegamos um hostal na calle Sagarnaga, bem no centro histórico da cidade e providenciamos o transporte que nos levaria no outro dia a montanha. A montanha Shacaltaya já fora a mais alta estação de esqui do mundo, mas com o aquecimento global a neve quase desapareceu de suas encostas nos últimos vinte anos. Esta foi a montanha escolhida, até porque foi a única em que nos permitiram pernoitar com uma criança.
Ao amanhecer tomamos um micro bus que havíamos contratado, levando todo material de montanha. O ônibus seguiu por uma estrada poeirenta, estreita, e que por muitas vezes atravessava desfiladeiros de centenas de metros de altura. O caminho foi ficando cada vez mais sinuoso e atravessando vales mais profundos. Chegando mais próximo do nosso destino a sensação era de que o veículo iria despencar de tão estreitos e acidentados que eram os caminhos. Medo...
O transporte
parou a cerca de três quilômetros da estação de esqui onde passaríamos a noite
acampados. Haviam mais algumas pessoas conosco, uma garota que acabara de
descer do ônibus aparentemente escorregou no gelo e caiu em uma poça de água
que se formara a beira da estrada, como ela não tinha roupas para trocar
decidiu ficar no ônibus e aguardar o grupo retornar, pois o mesmo faria apenas
uma caminhada de alguns minutos e seguiria para outro destino. Mas acho que
ninguém aguenta estar em um lugar tão majestoso e não sair para explorar um
pouquinho, mesmo com os pés e pernas congelando decidiu subir até a estação de
esqui.
Ao chegar na estação estávamos bem cansados, mesmo assim chegamos antes do grupo que veio conosco, que subia sem bagagem alguma. Todos estávamos começando a sentir o mal de altitude, então recorremos ao remédio natural já conhecido pelos incas a muito tempo, o chá de Coca, que preparei com o fogareiro que havia levado. Sempre que mencionamos a Coca alguém até mesmo por preconceito nos recrimina. Mas a Coca em natura não tem nada a ver com a cocaína, produto da qual é matéria prima, que para ficar pronta passa por dezenas de processos químicos.
O chá de coca ou mate de coca é muito popular na região e é tradicionalmente consumido por pessoas de todas as idades e no pais é reconhecido seu poder medicinal; sendo um dos melhores anti-inflamatórios conhecidos, além de ser útil para dores de cabeça, enxaqueca e como antidepressivo, dentre outras aplicações. A Emanuele não chegou a tomar esse chá, a danadinha nem precisou! Mas para nós adultos foi muito bom, cessando em parte os efeitos da altitude e tendo efeito logo que ingerido.
O guarda parques no indicou onde armar a barraca, e assim que fizemos preparamos uma refeição quente para amenizar o frio intenso que se fazia já ao final da tarde. Dormimos cedo aquela noite e pudemos presenciar um dos céus mais limpos e estrelados que jamais havíamos visto.
Acordamos com o clarear do dia, a barraca e os sacos de dormir aguentaram bem o frio. Mesmo não tendo nevado a noite, o teto da barraca amanheceu coberto de gelo. Caminhamos pelas proximidades da estação e aproveitamos a manhã para aclimatar um pouco mais, o ponto onde estávamos estava a cerca de cinco mil metros e a tarde subiríamos até o cume que fica a trezentos e cinquenta metros mais acima. Acabamos por verificar nessa caminhada, que as botas, minha e da Emanuele não eram tão boas como o fabricante prometia.
Almoçamos e a tarde fizemos a empreitada mais difícil ao galgar os últimos trezentos e cinquenta metros até o cume da montanha. Equivalente a subir três morros e meio do Atalaia empilhados, aqui na nossa região, só que partindo de cinco mil metros. A total falta de tempo para se aclimatar nos deixou bem extenuados, mas Emanuele parecia não sentir tanto. Pensávamos que iria ser mais difícil para ela, e no entanto, nos surpreendeu.
Ao retornar
passando pela estação tivemos uma má noticia, pois tínhamos planos de ficar
mais um ou dois dias na montanha, mas o guarda parques disse que recebeu ordem
de retornar a cidade para resolver alguns assuntos e por esse motivo as visitas
e a permanência na montanha ficaria vedada por dois dias, infelizmente forçando-nos
a regressar com o mesmo transporte que o levaria mais tarde. Desmontamos o acampamento
a contra gosto e nos preparamos para o retorno, deixando o boneco de neve que tínhamos
programado para o próximo dia para outra ocasião, assim como se arriscar no
snowboard, como havíamos planejado.
Apesar desse contratempo foi uma ótima experiência e pudemos constatar que as crianças, ao menos a Manu, se dá muito bem no ambiente de montanha, sendo uma experiência muito prazerosa e inesquecível. Ela voltou com inúmeras histórias para contar! Haja tempo para escutar...